Ensaio Sobre a Verdade — Teatro Faces (Primavera do Leste - MT)
- Thairo Meneghetti
- 8 de jun. de 2024
- 3 min de leitura
Texto por Wuldson Marcelo | Revisão por Santiago Santos | Fotografias por Fred Gustavos

Há um jogo beckettiano em “Ensaio Sobre a Verdade”, um texto de Wanderson Lana com montagem do Teatro Faces, em que o absurdo e os vazios encenam a nossa incomunicabilidade. Porém, a altercação e o atrito físico entre as personagens trazem mais do que o não dito, fazem eclodir um país patriarcal com seus crimes e fissuras.
“Ensaio Sobre a Verdade” apresenta Seu Zé Basílio e Inácio, pai e filho em clima de acalorada discussão e rejeição. Há uma raiva incontida de um lado e, do outro, uma súplica por explicação sobre fatos que pesam sobre a família: a morte de centenas de cabeças de gado e o que terá acontecido com a mãe de Inácio.
Contemplado no Prêmio Funarte de Dramaturgia 2018, o texto mistura verdades e mentiras, lembranças e invenções. A proposta de se ter dois atores interpretando cada um dos personagens proporciona que o espelhamento e/ou distorção da realidade se torne mais envolvente, mais perturbador. Edilene Rodriguez e Darci Junior atuam como Seu Zé Basílio, enquanto Dionathan Pessone e Wanderson Lana representam Inácio. Deste modo, as diferenças entre eles criam camadas que cobrem de sombras a verdade. É preciso desvelar o jogo cênico. O que é dito oscila. É a reprodução de um mundo repleto de informações, veloz, em que mal captamos o que é essência, o que é aparência. Mas tal diferenciação é possível atualmente?
Pai e filho falam sobre o extermínio de sua boiada. Que bois? Sobre como os animais enfrentaram a morte. Aos poucos percebemos a alegoria. Assim como o que houve com a mãe, que transita entre falso paradeiro e confissão de assassinato. Acusações e segredos se acumulam, ordenando e desordenando a cronologia dos acontecimentos.
Agente e motivação das ações são questões que nos capturam. E a alegoria transmuta-se em evidência de uma herança colonialista, machista, patriarcal e facínora. O descalabro de um tempo que se recusa a findar. Na Casa Grande, a exploração e a morte ainda alimentam a ninhada. Há espaço para rebelião ou apenas para manutenção do status quo?
A encenação se torna mais pungente pela cenografia mínima, com quatro cadeiras e o espaço circunscrito por uma cerca, que remete a um curral. A iluminação móvel segue os atores a cada troca de marcação, o que deixa no escuro outros pontos do cenário. Há verdades que se escondem nas sombras, nos cantos não iluminados. Enquanto pai e filho se digladiam em nome de uma revelação que tenta se obscurecer pelo que não se pode/consegue comunicar, as máculas de um passado e presente colonialista buscam se ocultar no “castelo” do latifundiário.
O poder corrói e está corroído. A incompreensão, o medo e a raiva que sufocam a Casa Grande num drama familiar são o espectro de abuso, aniquilamento e roubo promovidos por séculos contra o povo. Se as palavras erguem mentiras, elas também produzem autotraição e elucidação, implodindo as barbáries e fraudes do grande capital.
Neste sentido, o esfacelamento do patriarcado e a exposição de sua decrepitude estão pulsantes no ressentimento entre os parentes e nos diálogos que beiram o enlouquecimento (como em muitas das peças de Beckett).
Ao deixarmos a mini arquibancada da Escola Municipal de Dança, deparamo-nos com fotos de vários indígenas espalhadas no chão da antessala. O espanto é incontornável, assim como o choque, desnudando a alegoria. É uma continuidade, então o desfecho fora do palco é surpreendente. Esse é o poder da arte.
“Ensaio sobre a Verdade” é uma investigação de um Brasil profundo, das relações que nos transpassam e do sangue (derramado) que nos constitui.
*Este texto faz parte da cobertura especial do XIII Festival Velha Joana, realizado em Primavera do Leste (MT) entre 08 e 17 de novembro de 2019, para o qual o Parágrafo Cerrado foi convidado.
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